O sr. Sandro Pontes manifestou mais uma vez a intenção de debater sobre o Concílio Vaticano II – desta feita, sobre o ecumenismo conciliar. É com muito gosto, então, que crio esta página específica para o assunto; o debate deverá ser conduzido de maneira análoga ao anterior.
Com a palavra, o sr. Sandro.
Prezado Jorge, salve Maria.
Antes de propriamente demonstrar que o ecumenismo conciliar é, como já foi dito por mim antes, uma mistura daquilo que a Igreja sempre ensinou com aquilo que Ela já condenou, como todo o restante do concílio, comento o que você escreveu no post (01) anterior e que originou esta página:
“(…) Continuo defendendo que a posição do “Magistério pós-conciliar” é RIGOROSAMENTE a mesma daquela do “Magistério pré-conciliar” – aliás, esta sempre foi a minha tese, e parece-me ser a única minimamente razoável – à exceção de nuances terminológicas” (destaques meus).
Sim, esta é a sua tese, prezado Jorge. Porém, esta sua tese para que tivesse uma ainda que reduzida possibilidade de estar correta teria que no mínimo estar sendo ensinada pelo papa da Igreja Conciliar, que hoje responde pelo nome de Bento XVI. Ele teria que dizer rigorosamente aquilo que você diz. E eu lhe pergunto: ele diz isso, prezado Jorge? Se a resposta a esta minha indagação for “sim, ele diz isso” então a princípio você teria ainda uma chance de estar certo em suas colocações que procuram identificar a doutrina do Vaticano II com a doutrina ensinada até Pio XII. Se a resposta for “não, ele não diz isso” então é impossível entender o concílio da forma como você o entende. Pois você já partiria de uma premissa errada, a de que o Vaticano II adota rigorosamente as mesmas posições adotadas anteriormente pelo magistério pré-conciliar, enquanto que aquele que você considera como papa legítimo defenderia posição diferente desta. E seria um absurdo você discordar do papa reinante em questão tão espinhosa, concorda comigo, prezado Jorge?
Mas até mesmo antes de começar a tentar lhe mostrar que Bento XVI discorda frontalmente de sua posição, faço como que um parêntese para indagar sobre o sentido que teria o Vaticano II caso ele realmente não tivesse alterado nada de substancial no depósito da fé católica. Então para que fazê-lo da forma como foi feito, e não da maneira como todos os concílios eram feitos no passado? Por que fazer um concílio com inúmeros textos que muitas vezes não deixam claro o real ensinamento que se quer transmitir? Somente para gerar confusão?
Mas voltando ao assunto principal desta mensagem, vamos dar prosseguimento relembrando as palavras de João XXIII no discurso de abertura do concílio, palavras estas que, reconheço, estão em concordância com o seu pensamento:
“(…) Nosso dever não é apenas de guardar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos unicamente da antiguidade, mas de dedicarmo-nos com álacre vontade e sem temor à obra que a nossa época exige… É necessário que essa doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada em modo que corresponda às exigências de nosso tempo. Uma coisa, de fato, é o depósito da Fé, isto é, as verdades contidas na nossa veneranda doutrina, e outra coisa é o modo pelo qual essas doutrinas são apresentadas conservando nelas, todavia, o mesmo sentido e o mesmo alcance” (S. OEcum. Conc. Vat. II, Constituições, Decretos, Declarações, 1974, pp. 863-865)”.
Nota-se, prezado Jorge, que por estas palavras ditas por João XXIII ANTES do concilio ser efetivamente iniciado e concluído, a intenção de não se alterar nada da doutrina católica, mas ao contrário, mantê-la fielmente, apenas aprofundando-a com a ressalva de se manter o “mesmo sentido e o mesmo alcance” de tudo o que a Igreja ensinara até então. Mas será que isso foi feito realmente? Será que o concilio seguiu a orientação prevista por ele? Vejamos.
Pelo que eu tenho conhecimento, o membro da igreja conciliar que mais se aprofundou nesta questão sobre as mudanças doutrinais conciliares e como elas deveriam ser encaradas foi o senhor Joseph Ratzinger, hoje conhecido em todo o mundo pelo nome de Bento XVI. Existem muitos textos deste senhor abordando o tema. Vamos resumir, colocando apenas alguns que mostram, ao meu ver, de forma inequívoca, que é impossível sustentar que a posição do magistério pós-conciliar é rigorosamente a mesma do magistério pré-conciliar, como você sustenta. Primeiro, vejamos o que ele escreveu em 1974, em um período que pode ser chamado de “pós conciliar”, quando tudo ainda era muito recente:
“(…) Para sermos objetivos na ANÁLISE DOS DESAJUSTES DOS TEMPOS PASSADOS, que lançam suas sombras sobre a IGREJA DE HOJE, não deveríamos considerar apenas os fatos da antiguidade e da Idade Média, mas seria mister referir-nos também a outros fatos já bem próximos de nós E QUE NOS PARECEM REAIS DESAJUSTES. Poderíamos citar, por exemplo, A REAÇÃO CRISTÃ MANIFESTADA no século XIX e nos inícios do século XX no Syllabus de Pio IX e no pontificado de Pio X” (Joseph Ratzinger, Das Neue Volk Gottes – Enwürfe zur Ekkleseologie, Patmos-Verlag, Düsseldorf, 1969, trad. br. por Clemente Raphael Mahl: O Novo Povo de Deus, São Paulo, Paulinas, 1974, p. 257, destaques meus).
O que dizer destas palavras, prezado Jorge? Não são elas ditas pelo mesmo homem que hoje é reconhecido como papa por todo o mundo? Ou seja, na opinião muito importante deste senhor aquilo que nós consideramos doutrina católica imutável é, pasme você, “desajustes dos tempos passados” (e nós veremos mais adiante de forma inequívoca que o seu pensamento continua o mesmo ainda hoje). Ou seja, todos aqueles documentos condenando que conhecemos e que condenam o modernismo e os seus erros e que para nós deve ser tido como um escudo contra oserros que tentam destruir a Igreja é visto por este senhor como “desajustes”. Desajustes, prezado Jorge! A reação cristã manifestada gloriosamente contra a maçonaria e os modernistas pela pena de Pio IX e de São Pio X são desajustes, para Joseph Ratizinger, que ainda diferencia a Igreja Católica Apostólica Romana daquilo que ele chama de “Igreja de hoje” (sabe-se lá o que é isso).
Neste curto trecho que lhe apresento, fica nítido que ele tem reservas a três momentos “negros” da Igreja:
01) toda a antigüidade (de forma genérica);
02) a Idade Média;
03) os séculos XIX e inicio do XX (por conta do Syllabus de Pio IX e do pontificado de Pio X);
Ou seja, aqui ele declara em alto e bom som para Jorge e Sandro entenderem que a reação cristã manifestada no período pós revolução francesa é um real desajuste, juntamente com os outros dois momentos supracitados. Isso fica ainda mais claro na seqüência do seu texto, agora na página seguinte, quando ele diz:
“(…) Significará o último concílio uma ruptura, uma revolução ou uma continuação? Se for confrontado com certas tendências do século XIX e da primeira metade do século XX, o Concílio assinala, sem dúvida, UMA RUPTURA E UM AVANÇO MUITO GRANDE” (Padre Joseph Ratzinger, Das Neue Volk Gottes – Enwürfe zur Ekkleseologie, Patmos-Verlag, Düsseldorf, 1969, trad. br. por Clemente Raphael Mahl: O Novo Povo de Deus, São Paulo, Paulinas, 1974, p. 278, destaques nossos).
Eis a confissão explicita de que o Vaticano II rompeu com aquilo que a Igreja ensinou no período pós revolução francesa, período este que me parece Bento XVI ser obcecado! E é o homem que ocupa aos olhos do mundo a cátedra de Pedro quem o diz, ainda que em 1974.
Agora, continuemos para saber o que este senhor disse nas décadas seguintes até chegarmos ao “hoje” (palavra tão venerada pelos modernistas de plantão). Em 1985 o senhor Ratzinger escreveu:
“(…) Se se deseja emitir um diagnóstico global sobre esse texto [da Gaudium et Spes], poderia dizer-se que significa (junto com os textos sobre a liberdade religiosa e sobre as religiões mundiais) uma REVISÃO do Syllabus de Pio IX, uma espécie de ANTISYLLABUS” (Cardeal Joseph Ratzinger, Teoria de los Princípios Teológicos, Herder, Barcelona, 1985, p. 454. Grifos meus).
E antes que você me responda com os argumentos veritatianos, é bom lermos a seqüência do texto onde o então cardeal realça e “aprofunda” a sua idéia:
“(…) Contentemo-nos aqui com a COMPROVAÇÃO de que o documento DESEMPENHA O PAPEL DE UM ANTISYLLABUS, e, em conseqüência, EXPRESSA A INTENÇÃO de uma reconciliação oficial da Igreja coma nova época estabelecida a partir do ano de 1789″ (Cardeal Ratzinger op. cit. p. 458. Grifos meus).
Portanto, fica claro e apenas realço o que é dito por este senhor: o Vaticano II significa uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de Antisyllabus. Ainda que os argumentos de Alessandro Lima e de seus amigos estivessem corretos no que se refere a expressão “espécie de Antisyllabus” (e não estão) ainda assim é inegável e inequívoco que o que se ensina aqui é que o Vaticano II, através da Gaudium et Spes, realizou uma revisão do Syllabus de Pio IX. Ora, revisar significa exatamente inspecionar, rever ou corrigir algo. Quando revisamos um texto, um trabalho, um documento, o fazemos assinalando aquilo que está errado ou menos preciso, alterando estas coisas. Daí vem a comprovação de Ratzinger que o concílio desempenha o papel de um antisyllabus, expressando a intenção de se reconciliar com os hereges modernistas e maçons que dominaram o mundo a partir de 1789. E sendo assim, o concilio não pode em hipótese nenhuma manter a mesma posição do magistério precedente, pois se isso fosse verdade ele não teria revisado nada.
Claro que você, prezado Jorge, talvez inocentemente influenciado pelo professor Orlando Fedeli possa vir a me dizer algo do tipo: “Ratzinger mudou!”, ele, agora como papa “não é mais o mesmo”. Porque o professor Orlando conseguiu, não sei como (acredito que até de forma diabólica), convencer todos os católicos brasileiros e os de língua portuguesa em geral que acompanham estes assuntos (sejam tradicionalistas ou conservadores) que Ratzinger mudou! E qual é a prova que o professor cita? Nenhuma! Quais os argumentos utilizados para comprovar que este senhor realmente “mudou”? Nenhum! Ratzinger pensa do mesmo jeito que sempre pensou, utilizando-se hoje talvez daquilo que você chama da “nuances terminológicas” diferentes. Mas o pensamento de fundo continua o mesmo das décadas anteriores, onde ele combatia os documentos do passado (e continua combatendo), onde ele dizia gostar e aprovar a missa com canto gregoriano e latim (e continua a gostar e a aprovar esta missa). Enfim, teologicamente, no que este homem mudou? Em nada de essencial, eu diria.
E para provar que ele não mudou na essência eu apresento aquilo que para mim é o que foi escrito de forma mais aprofundada sobre o que fez de fato o Vaticano II na Igreja: o discurso de 22 de dezembro de 2005 (2), onde ele defendeu uma posição sobre o Vaticano II que poderíamos chamar de “o estandarte de seu pontificado”. Penso que através deste precioso discurso é possível respondermos se a Roma que aí está pensa que o concilio mudou ou não com relação ao passado. Então vejamos em primeiro lugar as seguintes palavras ditas por Bento no discurso em questão:
“(…) São todos temas de grande alcance – eram os grandes temas da segunda parte do Concílio – sobre os quais não é possível deter-se mais amplamente neste contexto. É claro que em todos estes setores, que no seu conjunto formam um único problema, podia emergir alguma forma de descontinuidade e que, em um certo sentido, SE TINHA MANIFESTADO DE FATO UMA DESCONTINUIDADE, na qual todavia, feitas as diversas distinções entre as históricas situações concretas e as suas exigências, resultava não abandonada a continuidade nos princípios – fato este que facilmente foge à primeira percepção. É EXATAMENTE NESTE CONJUNTO DE CONTINUIDADE E DESCONTINUIDADE EM NIVEIS DIVERSOS que consiste a natureza da verdadeira reforma”.
Fica claro por estas palavras que, para Bento, “em um certo sentido” o concilio de fato manifestou descontinuidade com a doutrina do passado, embora faça a ressalva daquilo que ele chama de “continuidade nos princípios”. Mas ainda que isso seja de fato verdade, ou seja, ainda que de fato o Vaticano II tenha mantido uma “continuidade nos princípios” católicos imutáveis, está admitido em última análise que este concílio manifestou, ainda que em “certo sentido”, uma descontinuidade com a doutrina precedente. E esta confissão vindo deste senhor impede que você, Jorge, continue a defender que a posição do Magistério pós-conciliar é RIGOROSAMENTE a mesma daquela do Magistério pré-conciliar. Não é! Pois algo que em certo sentido manifesta de fato uma descontinuidade não pode ser rigorosamente idêntico ao que existia anteriormente. Pode ser parecido, aprofundado, pode ser qualquer coisa, mas uma coisa nova, e não a mesmíssima coisa. Tanto isso é verdade que nesse mesmo discurso ele defendeu a seguinte idéia:
“(…) O Concílio Vaticano II, com a NOVA DEFINIÇÃO da relação entre a fé da Igreja e certos elementos essenciais do pensamento moderno, reviu ou também CORRIGIU ALGUMAS DECISÕES HISTÓRICAS, mas nesta aparente descontinuidade, ao contrário, manteve e aprofundou a sua íntima natureza e a sua verdadeira identidade”.
Fiquemos então com este ultimo ensinamento dele. Entendamos que Bento quer de fato transmitir que o que existe é apenas uma “aparente descontinuidade” com os documentos do passado, mas que o que aconteceu na verdade foi o aprofundamento da verdadeira identidade da Igreja. Ok, está entendido o que ele quis dizer aqui. Mas não podemos deixar passar despercebido que antes desta conclusão ele confessou duas coisas que são para nós o que mais interessam: que o Vaticano II trouxe uma “nova definição” da relação entre a fé da Igreja e certos elementos essenciais do pensamento moderno e que este concílio “corrigiu” decisões históricas tomadas pela Igreja no passado. Ora, se tais coisas que diz esse senhor são verdadeiras, é impossível que a “posição” do Magistério pós-conciliar seja RIGOROSAMENTE a mesma posição do Magistério pré-conciliar. É óbvio que a posição da igreja conciliar é diferente da posição da Igreja Católica Apostólica Romana. Isso é visível. Até Pio XII era uma determinada posição, agora é outra. Porque se existe uma “nova definição” esta somente pode ser diferente da “antiga definição”. A qual definição nós devemos aderir, prezado Jorge? A nova, conciliar, ou a antiga, de Pio IX e São Pio X? Bento XVI adere a nova definição promulgada pelo Vaticano II. E nós? E eu também lhe pergunto: como o concílio pode ter “corrigido” decisões históricas da Igreja e ainda assim manter rigorosamente a mesma posição de antes desta suposta correção? Ora, somente se corrige o que está errado. E depois que se corrige algo, este algo que antes estava errado passa a estar correto. Como então haver identidade entre o certo e o errado? Não pode! Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Se esta coisa foi corrigida, ela não é rigorosamente a mesma de antes de sua correção.
O difícil, ao meu ver, prezado Jorge, é conciliar a posição de que o concilio promulgou novas definições corrigindo decisões históricas sustentando simultaneamente que isso significou aprofundamento, e não ruptura de doutrinas. Para um herege modernista como Ratzinger, infame inimigo de Cristo e da Igreja Católica, isso é fácil, porque contradição é a especialidade de gente da laia dele e de sua corriola. Mas para nós, prezado Jorge, católicos sinceros que amamos a Igreja e odiamos o pecado, como conformar a nossa inteligência com este tipo de ensinamento? Impossível!
Concluo esta mensagem relembrando a passagem onde o glorioso Dom Lefebvre nos conta que em conversa com o Cardeal Ratzinger lhe dissera que não podia aceitar alguns ensinamentos do Concílio porque estavam em flagrante oposição com o Magistério precedente, ao que Ratzinger lhe respondeu: “Excelência, mas não estamos no tempo da Quanta Cura!” (3).
Durma-se com um barulho desses. Veja, prezado Jorge, que nesta mensagem eu nem entrei propriamente na questão dos ensinamentos conciliares sobre o ecumenismo, que ficará para ser debatidas posteriormente. Aqui, como preâmbulo de nosso debate que certamente será longo, apenas tento lhe mostrar que de acordo com os ensinamentos deste homem que aí está e que faz o papel de papa da Igreja é impossível sustentar, como você sustenta, que a posição do Magistério pós-conciliar é RIGOROSAMENTE a mesma posição do Magistério pré-conciliar.
Não é! É evidente que não! Ainda que Bento diga que houve apenas “aprofundamento” de doutrina (para não dizer evolução do dogma), admite claramente MUDANÇA de posição. Daí o seu erro, que exponho de forma caridosa, sempre no sentido de ganhar o irmão, e nunca de afastá-lo e nem de faltar de caridade para com ele.
Aguardando um comentário seu enquanto já inicio a minha próxima mensagem sobre o ecumenismo conciliar, me despeço cordialmente.
Sandro Pelegrineti de Pontes
(01) https://januacoeli.wordpress.com/2009/02/02/o-problema-inexistente/#comment-5755
(02) http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2005/december/documents/hf_ben_xvi_spe_20051222_roman-curia_po.html
(02) http://www.fsspx.org/fran/archives/Conferences/MgrFellay/italien/BruxellesJuin2005/Bruxelles2005-2.htm
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